terça-feira, 19 de maio de 2009

Paciência

Ah! Se vendessem paciência nas farmácias e supermercados... Muita gente iria gastar boa parte do salário nessa mercadoria tão rara hoje em dia.
Por muito pouco a madame que parece uma "lady" solta palavrões e berros que lembram as antigas "trabalhadoras do cais"... E o bem comportado executivo?
O "cavalheiro" se transforma numa "besta selvagem" no trânsito que ele mesmo ajuda a tumultuar...
Os filhos atrapalham, os idosos incomodam, a voz da vizinha é um tormento, o jeito do chefe é demais para sua cabeça, a esposa virou uma chata, o marido uma "mala sem alça". Aquela velha amiga uma "alça sem mala", o emprego uma tortura, a escola uma chatice.
O cinema se arrasta, o teatro nem pensar, até o passeio virou novela.
Outro dia, vi um jovem reclamando que o banco dele pela internet estava demorando a dar o saldo, eu me lembrei da fila dos bancos e balancei a cabeça, inconformado...
Vi uma moça abrindo um e-mail com um texto maravilhoso e ela deletou sem sequer ler o título, dizendo que era longo demais.
Pobres de nós, meninos e meninas sem paciência, sem tempo para a vida, sem tempo para Deus.
A paciência está em falta no mercado, e pelo jeito, a paciência sintética dos calmantes está cada vez mais em alta.
Pergunte para alguém, que você saiba que é "ansioso demais" onde ele quer chegar?
Qual é a finalidade de sua vida?
Surpreenda-se com a falta de metas, com o vago de sua resposta.
E você? Onde você quer chegar?
Está correndo tanto para quê?
Por quem?
Seu coração vai agüentar?
Se você morrer hoje de infarto agudo do miocárdio o mundo vai parar?
A empresa que você trabalha vai acabar?
As pessoas que você ama vão parar?
Será que você conseguiu ler até aqui?
Respire... Acalme-se...
O mundo está apenas na sua primeira volta e, com certeza, no final do dia
vai completar o seu giro ao redor do sol, com ou sem a sua paciência...

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Amor vem antes e sexo vem depois, ou não

Quando contei, na semana passada, que a Rita Lee tinha feito uma música com letra de um artigo que escrevi sobre "amor e sexo", choveram e-mails pedindo o texto. Fiquei feliz com a música (que é linda) e porque me senti coadjuvante dessa luz que ela acendeu na cultura brasileira. Rita é um caso sério. Ela brilha, purpurina, avermelha, cintila, se traveste, cresce e diminui, incha e emagrece mas, no fundo, ela é um caso sério. Ela faz essa visagem toda para nos fazer engolir uma dourada pílula: sua importância cultural e política no País. Rita tirou São Paulo da caretice, foi a guerreira da alegria durante a ditadura pois, em 68, ela estava de noiva, florida, com caras e bocas, mutante, provando que, marchassem ou não os soldados, sua metamorfose continuaria e que sua alegria, alegria, era mesmo a prova dos noves.

Rita não é só para ser ouvida; seus shows são um comício. A liberdade fica ali na cena, de back vocal, enquanto a Pátria, de botas e cabelo punk, dança rock, seguindo-a pelo palco como um Pluft. Eu não entendo de música, mas vejo a Rita aprontando há 30 anos, menina teimosa, sozinha, atacando o óbvio. Mas, seu protesto nunca foi chato, sua superficialidade é profunda.

Como Rita é original... ninguém é como ela no Brasil... Me lembro quando ela criou uma marca no braço, sei lá, "ritalee", como um Chevrolet, Shell, pois ela sabe que não somos um "sujeito único", muito antes dessas pós-modernidades aí. Ela é uma pré-Björk. Ela nunca cantou de um só ponto de vista, porque Rita são várias; no palco, ela parece um conjunto.

Rita é a "mina" das "minas" de Sampa, frágil e corajosa, do balacobaco. Por isso, orgulhoso, atendendo aos e-mails que pedem explicação sobre esses estranhos tremores, gemidos e espumas que chamamos de amor-sexo, "copidesquei" o antigo texto e o republico, com petulante jeito de quem sabe das respostas - ai de mim, pobre pierrô fingindo de arlequim!...

Aí vai o flash-back:

"Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão.

O amor é uma construção do desejo. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre com tesão.

Amor e sexo são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno - depende da quantidade ingerida.

O sexo vem antes. O amor vem depois. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento.

No sexo, o pensamento atrapalha.

O amor sonha com uma grande redenção. O sexo sonha com proibições; não há fantasias permitidas. O amor é o desejo de atingir a plenitude. Sexo é a vontade de se satisfazer com a finitude.

O amor vive da impossibilidade - nunca é totalmente satisfatório. O seexo pode ser, dependendo da posição adotada. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos.

O amor é mais narcisista, mesmo na entrega, na 'doação'. Sexo é mais democrático, mesmo vivendo do egoísmo.

Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do 'outro'. O sexo, mesmo solitário, precisa de uma 'mãozinha'. Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até na maior solidão e na saudade. Sexo, não - é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora. O amor vem de nós. O sexo vem dos outros. 'O sexo é uma selva de epilépticos' (N. Rodrigues). O amor inventou a alma, a moral. O sexo inventou a moral também, mas do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge.

O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um cowboy - quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: 'Faça amor, não faça a guerra.' Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas. O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica.

O sexo sempre existiu - das cavernas do paraíso até as 'saunas relax for men'. Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do século 12 e, depois, relançado pelo cinema americano da moral cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem - o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção; sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria da sacanagem. O mercado programa nossas fantasias.

Não há 'saunas relax' para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um 'amorzinho' para iniciar. O amor virou um estímulo para o sexo.

O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa 'grandeza'. O sexo é mais embaixo. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há 'sexo seguro', mas não há camisinha para o amor.

O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo é o sonho dos casados. Amor precisa do medo, do desassossego. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente na perda. O grande sexo sente-se na tomada de poder.

Amor é de direita. Sexo, de esquerda - ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta."

E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos fazer esquecer a morte. Ou não; sei lá... E-mails de quem souber para a redação.

Antigamente, quando eu era pequenino

Antigamente, quando eu era pequenininho... - com essa frase mágica eu corto qualquer choro de meu filhinho, qualquer bagunça em curso e ele sobe em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, para ouvir as estórias de meu passado. Por marketing paterno, eu descrevo o passado como um lugar meio escuro, ruim, sem nada, para ele valorizar os muitos brinquedos que tem, os homens-aranha, o Bat-Movel, o peixinho Nemo no aquário e as "gelecas" trêmulas no chão. É uma artimanha meio sacana, mas funciona; não só lhe dá um início de consciência de seu privilégio social, como valoriza o "bom papai" aqui.

E ele adora investigar meu passado:

Papai, antigamente não tinha vídeo? Não. Não tinha televisão? Não; tinha só rádio. Tinha He-Man? Não; tinha Super-Homem, mas só tinha no gibi. O que que é gibi? - ele pergunta. Revista de quadrinhos - respondo -, mas tinha Príncipe Submarino que hoje não tem mais, um super-herói que lutava debaixo d'água contra os polvos malvados e a lulas malditas e venenosas. E ele não morria afogado? Não, meu filho, porque ele era meio "peixe" também. E pescavam ele? É... tinha uns homens malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque. Tinha você, antigamente? Eu? É. Você, com seu papai e sua mamãe?

Tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato.

Por que você está chorando no colo desse homem? Não sei; eu acho que era vocação ha! ha! Que que é vocação? É um negócio aí... Você tinha amigos, papai? Tinha. Tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o Cacasseno (personagens de um livro de estórias) e... o meu amigo Albertinho Fortuna... (não sei por que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"...

Sempre achei graça nesse nome: Albertinho Fortuna...).

E vocês caçavam o gambá gigante? Sim; a gente ia na floresta e ia cada um com um pau na mão e íamos até a caverna do gambá gigante, que ficava lá no alto do Corcovado. Lá onde tem o "Quisto Redentor"? Isso, filhinho, a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando chegava perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro, argghhhh, era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele, a gente gritava de fora, tapando o nariz: "Gambá gigante, sai daí!.. Sai, gambá!" Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente, o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia dormir, feito você, agora...

E, enquanto meu filhinho começa a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu vou pensando em sua pergunta profunda: "Pai, o que que tinha antigamente?" Bem - respondo para mim mesmo - antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente deste casca-grossa de hoje... É... tinha eu... tinha nossa casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a Lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o Sol que era meu, a chuva que era minha, tinha as nuvens que eram minhas, as nuvens-girafa, as nuvens-camelo, que eu contemplava deitado no chão de terra onde as formigas eram minhas também, os caramujos nas folhas eram meus, sua gosminha madrepérola era minha, tudo fazia parte de meu universo de subúrbio.

Uma vez, teve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o Sol negro através de cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o Sol, tudo indo para longe, como os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.

Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, o som do rádio com as novelas deprimentes e o seriado do Capitão Atlas, tinha os namorados no portão, tinha os amores impossíveis, os suicídios com guaraná, as luas-de-mel fracassadas, tinha as lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, os velhos discos de 78 rpm, os cantores com som precário, as primeiras TVs em preto-e-branco, as saudades do matão, o luar do sertão, tinha um Brasil mais micha, mais pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho da roça que o Golpe de 64 interrompeu, e que, agora, essa mania prostituída de "Primeiro Mundo global" matou a tapa.

Hoje, esta pobreza é disfarçada pela falsa vertiginosidade de um progresso que nos submete como uma lei das forças produtivas.

É... - eu penso - antigamente, filho, tinha também uma coisa chamada "povo"; não o povo arrebentado, dividido, tonto de hoje. Era uma pobreza mais pobre, mas menos, como direi, menos clamorosa, menos trágica. Tinha uma nacionalidade ilusória, sim, com o povo apinhado nos bondes, iludido, mais burro que hoje, sem defesas, mas era um falso país em que acreditávamos.

Isso era legal, apesar da ingenuidade de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de justiça para que um novo país se realizasse. Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custava tanto, que teríamos de passar pelo inferno de 20 anos de ditadura, e tinha, sim, um "vazio" no Brasil, mas era um vazio que nos dava idéia de que algo ia ser construído ali naquele espaço, que ia surgir uma sociedade original, mesmo num futuro nevoento, cheio de urubus.

E, aí, eu me pergunto, vendo meu filhinho dormir: Como fazer, meu filho, para restaurar aquela idéia de Brasil, sem fugir das regras duras deste tempo de vertigem global? Eu não sei. Nem ele - sonhando com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo.