quinta-feira, 7 de abril de 2011

Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca

ESTE TEXTO É sobre ninguém. Meu avô não foi ninguém. No entanto, que
grande homem ele foi para mim. Meu pai era severo e triste, mal o via, chegava de aviões
de guerra e nem me olhava. Meu avô, não. Me pegava pela mão e me levava para o
Jockey, para ver os cavalinhos. Foi uma figura masculina carinhosa em minha vida. Se
não fosse ele, talvez eu estivesse hoje cantando boleros no Crazy Love, com o codinome
Neide Suely.
Meu avô, Arnaldo Hess, foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um
malandro carioca — em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de
pérola, o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente,
seu Patek Phillipe tão invejado, em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda,
com velhas gírias [Essa matula do Flamengo é turuna (forte)..] Meu avô era orgulhoso de
viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nos discos de 78 rpm, nas ondas do
rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem
malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite. Antes de morrer, ele me
olhou, já meio lelé, e disse a frase mais linda: "É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu
nunca mais vou à avenida Rio Branco" . Ali, onde ele me levava para tomar refresco na
Casa Simpatia, era o centro de seu mundo. Os políticos canalhas populistas que estão hoje
aí querem a volta do passado apenas pelo lado "sujo" do atraso. Mas havia também uma
poética do atraso — na Lapa, no Mangue, havia um Rio que, com poucas migalhas,
fabricava uma urbanidade pobre, bela e democrática.
Ele também me dava aulas de sexo. Contou-me uma vez que a melhor mulher que
ele teve na vida tinha sido uma "João". Que era "João"? Esse termo, ainda escravista,
designava as pretinhas tão pretinhas que tinham o pixaim da cabeça ralo, quase carecas.
Eram as "João". Pois ele me disse: "Foi no terreno baldio, ali na General Belfort... foi o
melhor nick fostene que eu tive..." (Inventara esse nome de falso inglês de cinema
americano para designar a cópula, sendo a palavra acompanhada pelo gesto vaivém de
bomba de "Flit": Nick Fostene...) Contava isso a um menino de dez anos, a quem ele dava
cigarros e ensinava ( a mim e ao Cláudio Acylino, meu primo) apegar bonde no estribo,
andando. Me apresentou sua amante, uma mulher ruiva chamada Celeste, que me beijava
trêmula e carente como uma avó postiça e que, sendo de "boa família" ( ele me falava
disso com uma ponta de orgulho), "nunca se metera em sua vida familiar oficial". Isso ele
dizia com os olhos machistas molhados de gratidão. Ou seja, ele me ensinava tudo errado
e com isso me salvou.
Quase analfabeto, vivera grudado com a turma dos intelectuais da Colombo,
babando com os trocadilhos de Emilio de Menezes, Olavo Bilac, Agripino Grieco nos
anos 20, o que lhe deu um fascinado amor às letras que não lia, mas que o fez trazer-me
sempre um livro novo, da Rio Branco, junto com a goiabada cascão e o catupiry.
Uma vez, já mais tarde, eu namorava uma moça lindíssima e virgem (claro) mas
burrinha. Reclamei com ele. Resposta: "Ah, é burrinha ? Você quer inteligência ? Então
vai namorar o Santiago Dantas! " Quando fomos aos sinistros rendez-vous, de onde nos
floresceram as primeiras gonorréias, nossos pais severos bronquearam: "Vocês são uns
porcos! " Já nosso vovô riu, sacaneando: "Poxa... boas mulheres, hein... ? "
Vovô nos ensinava a conversar com as pessoas, olho no olho. Na minha família de
classe média, celebravam-se as meias-palavras, o fingimento de uma elegância falsa, de
uma finesse irreal. Só meu avô falava com os vagabundos da rua, com os botequineiros,
com os mata-mosquitos. Enquanto minha família toda votava histericamente na UDN, em
pleno delírio golpista, meu avô pegou o chapéu, e foi votar. Eu fui atrás dele... "Votar em
quem?" "No Getúlio, seu Arnaldinho... ele gosta do povo e eu sou povo." "E eu sou 'povo'
também, vovô?", perguntei. Ele riu: "Você não; você tem velocípede..."
Ele me levava ao Maracanã, ele me levava em seu ombro para ver a estrela de
néon da cervejaria Black Princess ( até hoje me brilha esta supernova na alma), ele, uma
vez, deixou-me ver um morto na calçada, navalhado no peito ( "Parecia a fita do Vasco da
Gama", ele disse) — não me escondeu a tragédia. Me ensinou tudo errado e me salvou...
Meu avô adorava a vida e usava sempre: o adjetivo "esplêndido", tão lindo e
estrelado. A laranja chupada na feira estava "esplêndida", a jabuticaba, a mangacarlotinha,
tudo era "esplêndido" para ele, pobrezinho, que nunca viu nada; sua única
viagem foi de trem a Curitiba, de onde trouxe mudas de pinheiros. "Esplêndidas..."
No fim da vida, já gagá, eu o levava ao Jockey para ele conversar com o Ernani de
Freitas, o amigo tratador de cavalos, que lhe dava um carinho condescendente com sua
gagazice, falando de cavalos que já haviam morrido. "Hoje corre a Tirolesa ou a
Garbosa ? ", perguntava. "A Tiroleza está machucada, Arnaldo..."
Velho gagá, deu para dizer coisas profundíssimas. Uma vez, já nos anos 70,
celebrei para ele as maravilhas lisérgicas do LSD que eu tomara. Ele me ouviu falar em
"delírio de cores", "lucy in the skies" e comentou: "Cuidado, Arnaldinho, pois nada é só
bom..." Outra vez, vendo passar um super-ripongão sujo, "bicho-grilo brabo", comentou:
"Olha lá. Um sujeito fingindo de mendigo para esconder que realmente é... !
Há dois anos, na exumação de um parente, o coveiro colocou várias caixas de
ossos em cima do túmulo. Numa delas, estava escrito a giz: "Arnaldo Hess". Não resisti e
levantei de leve a tampa de zinco. Estavam lá os ossos de vovô. Vi um fêmur, tíbias, que
eu toquei com a mão. Vocês não imaginam a infinita alegria de, por segundos, encostar
em meu avô querido. Eu estava com ele de novo em 1952, sob o céu azul do Rio.
Meu avô não era ninguém. Mas nunca houve ninguém como ele.

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