quinta-feira, 7 de abril de 2011

Suzane, 19 anos, bela e rica, matou por amor

* Suzane Louise Richtfen (19 anos)e seu namorado, Daniel de Paula e Silva (21
anos) foram acusados de assassinar os pais dela em outubro de 2002. Segundo a jovem,
ela matou os pais por eles não aprovarem seu namoro.
CRIME HORRORIZOU todo mundo. Até os assassinos na cadeia chocaram.
Mesmo no mundo do crime há uma ética a preservar, mesmo o pior criminoso tem um
interdito moral. O crime de parricídio e matricídio premeditado durante o sono é mais que
um crime; é uma viagem ao desconhecido, é o desejo de atingir um recorde supremo. Não
há nada pior. Que delito Suzane e seus cúmplices poderiam considerar mais hediondo?
Suzane está no topo, nada há além dela. Ela nos aterroriza com sua crueldade. Os dois
monstros boçais ainda dá para entender: queriam grana, motocas e tatuagens, filhos dessa
geração de shoppings e violência.
Ela, não. Precisamos encontrar explicações para ela, senão ficamos
ameaçadíssimos. O crime sem motivo nos desorganiza. Se eIa, jovem, bela e rica, matou,
que será de nós ?
O crime sujo da favela apenas nos dá medo. O crime limpo e rico nos desampara,
nos dá vertigem. Suzane nos leva à beira da loucura, mas ela não é louca. Então, ela
matou por quê? — perguntamo-nos. Isso é que fascina e apavora no psicopata: ele toca
em nosso mistério. Vizinhos e amigos sempre dizem: "Eram doces, educados, tímidos..."
Até a hora em que metralham espectadores num cinema ou matam pai e mãe dormindo.
Por isso, os psiquiatras buscam "causas", como se a vida social fosse um contrato
de bom senso, como se fôssemos animais racionais e a loucura, um "desvio". É o
contrário: a sociedade é que é um desvio. Não adianta ter ódio de Suzane; não há punição
que apague o seu crime, não há como pagar sua dívida. O inferno cotidiano que ela terá
não apagará aquele momento, sempre além de qualquer entendimento.
Mas mesmo os psicopatas precisam de uma razão maior para justificar o crime.
"Matei por amor...", diz a menina de 19 anos, fina, linda, universitária. No entanto, esse
amor que a menina invoca é outro "amor". Ela e todos nós precisamos "justificar" esse
crime. Ou seja, deve haver um motivo para se matar a mãe. Ela também precisa de um
motivo, pois ela não sente culpa porque matou. Ela matou justamente para preencher um
grande vazio em seu mundo interno, matou para atravessar um deserto afetivo, matou
porque não sentia culpa, matou por vingança de não sentir culpa, matou até para tentar
sentir alguma culpa, sentir até algum... amor.
Por isso, sua declaração nos apavora: "Matei por amor! " Matou, sim, por amor,
para conseguir um pavoroso amor por que ela ansiava. Que estranho amor é esse ?
Eu acho que ela buscava o "amor" da hora. É o amor que nos grita de dentro do
comércio, de dentro do consumo, que nos chama de c dentro de um narcisismo impossível
de ser satisfeito, um amor que consome tudo, querendo uma felicidade absoluta, com a
abolição de todos os vínculos, todas as barreiras do "Édipo", todos os deveres sociais,
Suzane quis fazer um gesto imperdoável para sempre, absoluto, livre para sempre da
condição humana, quis o sangrento incesto invertido com os pais deitados na cama onde
Ia foi (talvez?) feita.
Esse crime seria uma espécie de conquista de Poder, sim, o poder de estar acima
dos sentimentos, da justiça, o poder de viver sem ;sociedade em volta, um poder maluco
que vemos anunciado nas entrelinhas das ideologias de hoje, nas gargalhadas sem
remorso nas revistas, na abolição descarada da compaixão, na promessa da satisfação
total, na fome de ter "tudo", O poder de liberdade crua que Suzane almejou me lembra o
poder que os Macbeth conquistariam, depois de "assassinarem o sono".
A frase da peça que mais me aterroriza é quando lady Macbeth, preparando-se para
o crime, grita a Deus ( ou ao demônio) : "Unsex me!" ( "Dessexualize-me !") Ou seja:
"Tire de mim a bondade feminina, transforme-me não num homem, mas tire o sexo de
mim, para que eu seja um ser livre da diferença, livre da condição humana dividida e me
transforme num ser monobloco, com um desejo só."
Como seria o amor de Daniel e Suzane, "Romeu e Julieta" ao contrário, se tudo
tivesse "dado certo"? Com os pais mortos, grana no bolso, garupa de motocicleta, os dois
teriam uma espécie de fusão, de orgasmo contínuo, acima da vida, acima do cotidiano,
pois ninguém mais poderia existir — só eles. i
A sociedade está tão narcisista, tão excludente de qualquer solidariedade, tão brutal
no seu desejo de satisfação, que contamina até os privilegiados. A pulsão de morte anda
solta. Vivemos atacados pela brutalidade do noticiário, pelos homens-bomba, pela
estupidez da cultura que gera batalhões de rapazes criminais, sem camisa, obcecados por
uma felicidade de consumo impossível. Não somente as balas nos atingem, mas também a
imensa boçalidade da cultura.
Suzane é psicopata, mas nossa sociedade também o é. Não há explicação para esse
crime. Não adianta procurar causas, traumas. Esse crime ficará sempre em aberto.
Misterioso, como nosso destino.

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