quinta-feira, 7 de abril de 2011

Resposta a uma moça 50 anos depois

OUTRO DIA, ESCREVENDO sobre meu passado, falei de uma menina da Urca
que, de longe, eu considerava minha namorada, Silvinha, moreninha de olhos verdes.
Dias depois, recebi um e-mail assim:
"Meu amigo Arnaldo,
Lisonjeada fiquei ao ler sua coluna de 29/06 pp. por me ver citada em suas
reminiscências. Hoje, com 46 anos de casada, com dois filhos e dois netos, entristece-me
pensar que a meninada atual não pode ter a infância livre e despreocupada que tivemos e,
portanto, não terá as lembranças das peripécias próprias de cada fase. Ah, bons tempos!
Agradecendo as citações, deixo aqui um saudoso abraço. Hoje, sou a 'grisalhinha' de
olhos verdes.
Silvinha!
Fiquei emocionado com o e-mail e agora respondo.
Querida Silvinha,
Hoje, mais de 50 anos depois, vou dizer o que sentia por você. Você foi o que eu
imaginava o que seria uma "namorada". Você despertou em mim um tremor novo, a
primeira emoção do que mais tarde vi que chamavam "amor". Em uma tarde cinzenta, em
frente ao portão de sua casa, eu senti uma alegria inesquecível como se tudo ali estivesse
no lugar perfeito: a brisa leve da tarde, a paz da rua, o silêncio sem pássaros, você
encostada no portão marrom do jardim. Não sei por que, senti uma felicidade
insuportável, como se ouvisse o calmo funcionamento no mundo. Percebi confusamente
que ali, no teu sorriso, ou olhos, ou boca, estava a explicação do sol filtrado em listras
entre as folhas da árvore e a perfeição do som agudo que tirei da folha de fícus enrolada
como uma flautinha vegetal, instrumento que hoje os garotos não conhecem mais.
Esse foi um momento que me ficou nos últimos 50 anos. Depois, uma brincadeira
também esquecida: "casamento japonês", onde se escolhia uma menina a quem se
perguntava: "Pêra, uva ou maçã"; você disse "uva" e eu beijei timidamente seu rosto,
sentindo-me, em seguida, voar por cima do seu jardim, vendo as casas da Urca lá
embaixo. E, assim, você ficou de namorada oficial de minha infância imaginária.
Não sei por que, Silvinha, sempre tive fascinação por meninas que me deixavam
arrebatado e com medo ao mesmo tempo, sempre e algum modo as meninas que me
atraíam me pareciam inatingíveis, etéreas, como se fossem destinadas a outros e não a
mim... essa impossibilidade aumentava meu fascínio de pierrô.
Aliás, devo confessar hoje, 50 anos depois, que você não foi a única.
Márcia corria de bicicleta pela pracinha e só tinha olhos para o Porcolino e olhava
com desdém sorridente para minha tentativa de alcançá-la na bicicleta, e eu via suas
pernas sob a saia que ventava e a bicicleta parecia deixar um rastro de cometa de Márcia;
também, mais tarde, ainda sem te esquecer, confesso que me apaixonei por Ciomara, que,
percebendo meu interesse tímido, aplicou-se em me espezinhar, tendo eu sofrido muito
vendo-a cantar provocativamente "Vivo esperando e procurando Cervantes no meu
jardim", uma versão da música "Four-leaf clover", um sucesso na época, que ela adaptou
para conquistar Cervantes, o belo half-back do time Arsenal. Ciomara me fez sofrer,
vendo-a de mãos dadas com ainda outro, para espicaçar também Cervantes, não eu,
debaixo dos flamboyants carregados de flores vermelhas.
Devo dizer também que fui crescendo e enlouqueci de um amor mais carnal por
uma moça mais velha, Isadora, de pernas lindas no maiô roxo Catalina, alva, de boca
rubra com muito batom. Daí para a frente, Silvinha, já adolescente, comecei minhas
incursões pelo mundo do pecado, sempre instruído por meu professor de sacanagens, o
saudoso pipoqueiro Bené, que você certamente conheceu, ele que me induzia às mais
pecaminosas ações solitárias, dando-me revistinhas de mulher nua, ainda ingênuas, como
Saúde e Nudismo, cheias de moças azuis, deitadas em praias remotas. Nessa época eu já
vivia em Copacabana, na casa de meu avô, onde eu tinha mais liberdade que sob as
ordens de mamãe. Lá no Posto Seis, no escuro dos cinemas, as primeiras namoradas se
retorciam e se recusavam ao assédio a seus desejados peitinhos, me deixando enroscado
em intrincados sutiãs cheios de presilhas e elásticos, que me impediam de chegar à
maciez dos seios ocultos, enquanto tiroteios rolavam na tela e eu me embaraçava nas
terríveis teias das alças, de onde saía desesperado com dores nos rins de tanto ardor
insatisfeito.
Depois, Silvinha, continuei minha trilha pelos caminhos que se abriam para os
jovens solitários daquela época: as casas de pecado do Catete, os famosos rendez-vous, o
que me fez dividir as mulheres em "santas" e "prostitutas", ficando as santas como você
em minha memória e as outras sendo fonte de erros e sofrimentos. Todas, então, santas e
bruxas, eram intangíveis, todas impossíveis. Veja como se formavam os jovens nos anos
50 para o amor.
Não conversamos nunca, Silvinha, você nem soube que era minha namorada
secreta, e vivemos esse meio século em mundos diversos. Você deve ter sido feliz, com
filhos e netos, seguindo a trilha natural que saía do seu jardim, enquanto eu tive um
caminho mais torto, sempre meio fora das coisas que eu via acontecer.
Tenho inveja das estradas largas e sadias e talvez eu tivesse sido mais feliz, se
tivesse feito a Escola Naval como meu pai queria, e hoje fosse um orgulhoso almirante
comandando cruzadores pelos mares do meu Brasil.
Mas não posso me queixar de nada, casei várias vezes, tive duas filhas e um filho
maravilhosos, chorei muitas vezes de dor-de-corno e de desentendimento, mas não posso
me queixar, pois, além do que vivi, vejo hoje que as memórias são tão sólidas quanto as
realidades, que muitas vezes se esvaem mais rápido que aquelas. Você ficou como uma
primeira sensação do que chamam "amor". E como diz o poeta: "...as coisas findas, muito
mais que lindas, essas ficarão..."
Beijo tardio,
do Jabor.

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